Existem algumas situações clássicas de pacientes que se recusam a lidar com o problema de base de seu sofrimento psíquico. A saber, a grandiosidade, o sentimento de possuir a prerrogativa sobre coisas da vida que são sentidas com uma ideia de direito e titularidade de privilégios inerentes a si, além de um tipo específico de prejuízo das faculdades empáticas no que se refere a estar interessado pelos outros. O que caracteriza a essência do transtorno do narcisismo em um indivíduo é o sentimento inelutável de profundo vazio que mal chega à sua consciência. Em lugar disso, a falta de propósito existencial se desdobra em indignação — sentimento mais tolerável para todos nós — e, então, naquilo pelo que o narcisista é mais conhecido (ou reconhecido): a inveja que o faz agir com destrutividade diante de qualquer fator que destaque a impossibilidade de perfeição. É justamente por conta dessa mecânica de vazio, inveja e raiva que estamos falando de um transtorno no qual toda a manutenção da autoestima depende de afirmações externas, e é isso o que faz do sujeito um paciente com critérios de inclusão em um tratamento.
Pacientes narcisistas podem ser mais ou menos funcionais, com ou sem sintomas clínicos significativos. Isso significa dizer que podem ser tanto pessoas em relacionamentos estáveis, com filhos, ocupando cargos altos e financeiramente bem estabelecidas, como sujeitos arruinados em sua vida social, íntima e profissional. Os assuntos que um narcisista traz refletem uma miríade de situações. Amantes sustentados financeiramente e substituídos a toque de caixa; relações de abuso e dependência de substâncias psicoativas, que têm seu lugar na vida do sujeito menosprezado; ou mesmo desentendimentos que o sujeito vive nas relações sociais e de trabalho — que, curiosamente, se remetem a situações verticais em que alguém sempre está mandando, desrespeitando ou cobiçando o sujeito, que também, curiosamente, comumente se declara uma vítima indignada da situação.
Ademais, não devemos esquecer que o narcisismo não é apenas um transtorno. Usa-se o termo para falar do processo normal de construção do sentido de si mesmo que toda pessoa experiencia em seu desenvolvimento. Também devemos atribuir ao narcisismo saudável a autorrealização, a ambição legítima e a busca por melhora pessoal nos valores, nas metas e nos objetivos. Deixando clara a diferença entre a patologia do narcisismo e sua versão natural, um sujeito que possui uma estrutura mental capaz de dizer que “está indo bem” e que se sente capaz de pensar que pode ter orgulho de si mesmo tem em mãos as condições psicológicas para perseguir suas ambições e ideais, realizar tarefas e operar efetivamente no mundo. Essas seriam as consequências do narcisismo normal.
Peço ao leitor paciência, porque a questão se aprofunda ainda um pouco. Adianto que esse pedido tem boa intenção. Não devemos correr o risco de vulgatas. Se algo de muito ruim foi feito na ciência que se ocupa da identificação, classificação e tratamento do sofrimento psíquico, foi a espetacularização de termos e descrições demasiadamente simples que só servem para enriquecer uns poucos a custo de empobrecer a discussão geral. Então, indo na direção oposta, sugiro pensar o transtorno do narcisismo seguindo a metáfora de uma luva. Nela, temos duas faces de um mesmo tecido, ou seja: se temos narcisistas “clássicos” e facilmente identificáveis na cultura popular — sujeitos grandiloquentes, “de peito aberto” e falastrões, movidos pela necessidade de plateia que escute seus feitos maravilhosos e que lhe renda aplausos –, temos também uma forma velada de narcisismo, que se apresenta em discursos de autocomiseração e profunda desvalia, mas que se articula à versão grandiosa por conta do tema comum da idealização, estando, porém, camuflado através de discursos vitimistas cheios de desvalorização e sentimentos de vergonha, inferioridade e desmedida sensibilidade à crítica.
Finalmente, é importante diferenciar o atual momento histórico, em que estamos culturalmente inflados pela busca de amor-próprio, de um grupo de pessoas que é gravemente prejudicado na forma de viver profissional e intimamente; aqueles cuja patologia arruína a própria vida e a de todos ao seu redor. Seria demasiadamente pueril dizer que as raízes da patologia do narcisismo, expressas na vivência de futilidade e vazio, estariam ligadas ao declínio dos valores culturais e às modificações da moral sexual. Afirmar que vivemos numa cultura do narcisismo seria tentador, porém simplificaria demais a complexa relação entre o indivíduo, seu mundo interno e a sociedade.
Bartholomeu de Aguiar Vieira é professor de Psicopatologia, Estágios de Psicodiagnóstico e Avaliação da Personalidade do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Sobre a Universidade Presbiteriana Mackenzie
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