Em 28 de março de 2011, nos arredores de Tiblissi, capital da Geórgia, uma senhora de 75 anos realizava escavações para encontrar cobre, com o intuito de vender o material como sucata. No entanto, durante a busca, ela acidentalmente cortou um cabo subterrâneo de fibra óptica, o que bloqueou o acesso à internet para quase toda a Armênia, grande parte da própria Geórgia e de algumas áreas do Azerbaijão. O jornal britânico The Guardian, que à época reportou o caso, classificou as consequências da “sabotagem involuntária” como “catastróficas”. Afinal, o país da idosa desastrada fornecia, naquele período, aproximadamente 90% dos serviços de web ao princial vizinho afetado. Cerca de 3,2 milhões de armênios ficaram praticamente imobilizadas durante cinco horas, enquanto canais de TV da região exibiam repórteres de uma agência de notícias da capital Yerevan atônitos em frente a computadores sem grande utilidade para o momento.
A mulher acabou detida, mas liberada temporariamente devido à idade avançada, informaram as autoridades georgianas. O cabo danificado pertencia à rede ferroviária local que, apesar de estar em área fortemente protegida, acabou exposto após deslizamentos provocados por fortes tempestades.
Desconexões como essa ocorrida no leste europeu evidenciam o entrelaçamento profuso entre a nossa sociedade e o sistema global de hiper-realidade online. “Colocamos tudo em computadores — desde as infraestruturas críticas de hospitais até as administrações públicas, universidades, empresas, nossos corpos, nossas roupas, nossos eletrodomésticos e a eletricidade”, ponderou a jornalista Esther Paniagua, autora do livro Error 404: ¿Preparados para um mundo sin internet? (sem edição no Brasil), em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. “Por isso, se a internet caísse, tudo deixaria de funcionar e seria produzido um efeito em cascata, um efeito dominó, porque afetaria até mesmo os serviços que não estão conectados à rede.”
Na mesma conversa, Esther usa os supermercados para exemplificar o impacto de uma desconexão total em nossas vidas. Afinal, conforme visto na pandemia de Covid-19 e em filmes com temática apocalíptica, esses estabelecimentos costumam ser o destino de cidadãos preocupados com a possível falta de abastecimento de alimentos, em um cenário de incertezas. “Sem internet, eles não poderiam faturar, só poderiam cobrar em dinheiro, mas não poderíamos sacar dinheiro do banco. De forma que os produtos estariam ali, mas não poderíamos comprá-los”, explica a jornalista.
Em entrevista ao R7, Francesca Musiani, pesquisadora do Instituto de Ciências da Comunicação da França, acrescenta que, “as primeiras 24h” sem internet, “seriam consideradas uma chance de fugir de nossas vidas diárias.” No entanto, “depois disso, a preocupação assumiria o controle.” Ainda assim, a acadêmica acredita que entre uma semana e um mês de desconexão, “procuraríamos soluções em todos os lugares, retornando a alguns meios de comunicação anteriores para compartilhá-las”, explica.
Para Dennett, nossa única chance de sobrevivência residiriam nas “primeiras 48 horas” de desconexão. Isso, se pudermos contar com o que ele chamou de “botes salva-vidas”, antigos pontos de encontro, onde os cidadãos se reuniam quando percebiam algo errado, como praças ou órgãos governamentais, por exemplo. “O que digo não tem nada de apocalíptico, pode falar com qualquer especialista e lhe dirá o mesmo que eu, que é questão de tempo a rede cair”, revelou o filósofo a García. Queda que, segundo Esther, não seria seguida de um plano para ação imediata. “Ao nível governamental, não existe nada”, garantiu à BBC.
No entanto, Francesca Musiani acredita que existam diretrizes a serem seguidas, em uma eventual queda geral da internet: “Penso que a maioria dos estados/governos têm algum plano de apoio/resiliência a implementar, em caso de enfraquecimento ou encerramento de suas “internets nacionais”. Simplesmente não falam muito sobre isso, por razões óbvias de segurança nacional”, explica. “Quanto ao motivo pelo qual não existe um plano global, infelizmente a história da governança da internet nos diz o porquê”, provoca.
Desde a massificação do uso da internet, a rede onde investimos o funcionamento da nossa sociedade já evidenciou algumas formas, em menor escala, pelas quais nos manteria desconectados.
Entre abril e maio de 2007, a Estônia foi vítima de um ataque cibernético coordenado. “Durante três semanas, portais governamentais e parlamentares, ministérios, meios de comunicação, fornecedores de serviços de internet, grandes bancos e pequenas empresas foram todos alvo de uma negação de serviço distribuída (DDoS)”, informa texto no site do Centro de Excelência de Comunicações Estratégicas da OTAN. O documento também aproxima o acontecimento citado à decisão do governo local de remover de Talín, capital do país, um monumento em homenagem aos soldados do exército da antiga União Soviética — que também abrigava os restos mortais de combatentes.
Após protestos de manifestantes de etnia russa, iniciou-se o tráfego de rede malicioso em questão, atribuído ao país vizinho, que negou qualquer envolvimento na ação. “Os ataques causaram algumas perturbações e custos econômicos”, afirma o informe citado acima. “Porém, talvez mais importante ainda, expuseram as vulnerabilidades da Estônia e demonstraram o potencial dos ataques cibernéticos para causar danos muito mais duradouros, se pretendidos.”
E é na esfera governamental, onde reside outra forma de desligamento da rede. Em junho de 2023, “o governo do Senegal cortou o acesso a serviços de internet móvel em certas áreas”, para conter as manifestações contra a condenação do líder da oposição, Ousmane Sonko. “Devido à disseminação de mensagens odiosas e subversivas, a internet móvel está temporariamente suspensa em determinadas horas do dia”, escreveram as autoridades em comunicado à população.
Em artigo da pesquisadora Lisa Garbe, publicado no site The Conversation, ela explica que “essa é uma tática que os governos utilizam cada vez mais em tempos de contenção política, como eleições ou convulsões sociais.” A acadêmica ainda acrescenta que, “no Senegal, os fornecedores de serviços de Internet provavelmente utilizaram a inspeção profunda de pacotes [desligamento de apenas partes da rede] para bloquear o acesso ao WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Twitter e YouTube.” À época, a Anistia Internacional avaliou que essas “restrições constituem medidas arbitrárias contrárias ao direito internacional e não podem ser justificadas por imperativos de segurança”, conforme reportado pela Reuters.
De volta aos cabos de fibra óptica, o rompimento de um deles em abril de 2018, fez a Mauritânia ficar sem acesso à internet por dois dias. No entanto, ao contrário do caso da Geórgia, a desconexão ocorreu a partir do leito oceânico, por onde corre a fibra óptica da Costa Africana para a Europa (ACE, na sigla em inglês). Além da Mauritânia, outras nove nações da África Ocidental, em menor proporção, foram afetadas por interrupções nos serviços online. Conforme reportado pelo jornal britânico The Independent, o episódio teria sido provocado por um pequeno barco de pesca. Durante o episódio, grande parte da região afetada também relatou cortes no fornecimento de energia elétrica — que utiliza ferramentas online nos sistemas de distribuição.
E se você passou os últimos meses de vida no planeta Terra, conectado aos diversos sites de notícias ainda disponíveis, talvez tenha se deparado com manchetes do tipo: “Supertempestade solar pode ‘destruir a internet’ por semanas ou até meses”. Esta é a quarta possibilidade de desconexão global que, conforme declarou Esther Paniagua à BBC, “apesar de extremamente improvável, se ocorresse, seria a queda mais catastrófica e mais distópica, já que afetaria não só a rede, mas também aparelhos como satélites e muitas outras tecnologias.”
Para entender do que se trata uma tempestade solar, o R7 consultou Pedro Loos, do canal Ciência Todo Dia — o mesmo entrevistado do primeiro vídeo acima. Assista abaixo!
Em complemento a Loss, Ilya Usoskin, professor doutor em Física Espacial da Universidade de Oulu, na Finlândia, explicou ao R7 que uma tempestade magnética pode ser composta por difentes etapas: eventos de partículas solares, que seriam os fenômenos ocorridos na superfície solar; tempestades magnéticas, quando uma ejeção solar atinge a magnetosfera (regiçao que envolve a atmosfera terrestre); e explosões de rádio ou raios X. “Esses tipos de tempestades solares não vêm necessariamente como um pacote, ou seja, um evento de partículas solares pode existir sem tempestade geomagnética e vice-versa”, esclare o especialista.
Inicialmente, o pico de atividade solar foi noticiado por diversos veículos para acontecer a partir da metade de 2025. Mas, muitos leitores e seguidores de veículos de imprensa foram surpreendidos com a antecipação do fenômeno para o final de 2024. Principalmente, pela maioria dos conteúdos estar quase sempre acompanhado por aspas alarmantes de especialistas sobre a possibilidade de colapso dos sistemas de comunicação e geolocalização — o que, somado à imprecisão de data e projeções sombrias do futuro da rede, aparentemente, relegou os dados científicos do evento cíclico ao segundo plano.
“Não sabemos ao certo quando exatamente o pico ocorre, devido a um componente estocástico essencial [sequência de variáveis aleatórias] no processo do dínamo que forma o ciclo solar”, lembra o professor Usoskin. “Além disso, o pico pode ser definido de diferentes maneiras. Consequentemente, falar em data exata faz pouco sentido. Previsões definitivas não podem ser feitas, mas previsões probabilísticas são possíveis”, avalia.
O fato é que tempestades solares podem, sim, causar danos as nossas estruturas tecnológicas, como já foi registrado, ainda que em momentos de menor conectividade. No vídeo a seguir, Loos esclarece as consequências do fenômeno ao planeta Terra, além de acrescentar o relato de distúrbios ocorridos durante o ano de 1989.
Para Usoskin, a questão não é apenas “se”, mas “quando” teremos uma tempestade geomagnética da intensidade do Evento Carrington. “Tais eventos podem ocorrer aproximadamente uma vez por século e são imprevisíveis no longo prazo. Por exemplo, houve uma supertempestade solar em 23 de julho de 2012 após uma forte explosão, que ocorreu no lado oposto do sol. Não atingiu a Terra porque estava do outro, explica. “Mas, se o fizesse, experimentaríamos uma tempestade geomagnética comparável à de Carrington, com grandes consequências. Tivemos sorte em 2012, mas pode ocorrer novamente.”
No caso de um evento similar, “não seria nada difícil uma tempestade geomagnética afetar nossos serviços de comunicação na totalidade”, afirma Loos. “Só que a gente precisa de uma junção de fatores, que culminaria, no final, em nossos eletrônicos pararem de funcionar devido a correntes induzidas.”
O que, para o professor Usoskin, tornaria a vida moderna mais difícil, mas não, mortal: “Há 30 anos não existiam tais tecnologias que pudessem ser afetadas, portanto, num caso grave, teríamos regredido 30–40 anos. Há estimativas de que uma recuperação após um evento desse tipo demoraria até dez anos e custaria biliões.” Ainda assim, ele lembra: “Tais tempestades extremas atingiram a Terra no passado — sabemos disso a partir de dados de arquivos naturais. Mas, nossos antepassados nem sequer as notaram.”
No contexto offline hipotético, o R7 perguntou às fontes consultadas para a matéria, como elas imaginam que a sociedade se comportaria nessa realidade — inclusive, em períodos específicos de tempo, que você pode consultar no infográfico abaixo.
Assim como o professor Ilya Usoskin, Pedro Loos tem uma projeção otimista da capacidade humana de se organizar para superar dificuldades. “Sistemas bancários vão deixar de funcionar, sistemas de saúde vão deixar de funcionar. A gente terá que reconstruir tudo isso com base em um mundo não digital. Será particularmente desafiador para países que não têm uma estrutura [sólida] de governo”, aponta Loos. Ele também ressalta que ainda existem pessoas hoje, que passaram quase toda a vida sem internet. “Acredito que elas nos ajudarão a navegar muito bem nesse novo mundo.”
Já no período de um ano offline, Loos projeta que a humanidade esteja novamente reconstruindo as trilhas que a levaram até a internet. “Vejo algumas pessoas comentarem que voltaríamos 200 anos na história. Discordo desta visão. Olhar 200 anos atrás é ver que não sabíamos como produzir um microchip. A diferença é que eles deixariam de funcionar”, explica. “Vai ser muito mais rápido retornarmos ao ponto onde estávamos.”
Ao menos no que diz respeito a exemplos concretos da natureza humana, a visão positiva de Pedro Loos está bem amparado. No início da obra Humanidade: Uma história otimista do homem, do historiador holandês Rutger Bregman, o autor retoma relatos dos bombardeios alemães sobre Londres, no início da Segunda Guerra Mundial. Amparado pelo livro Psicologia das Multidões, do francês Gustave Le Bon, Adolf Hitler trabalhou com a hipótese do acadêmico de que, diante do pânico, “o homem desce vários degraus da escada da civilização”. No entanto, a reação britânica aos ataques aéreos nazistas foi completamente outra.
“Sem dúvida, havia raiva e tristeza; e uma terrível dor pelos entes queridos perdidos. No entanto, as alas psiquiátricas continuavam vazias. Não só isso. A saúde mental pública, na verdade, até melhorou. O alcoolismo diminuiu. Houve menos suicídios que em tempos de paz. Quando a guerra acabou, muitos ingleses sentiram saudade dos tempos da Blitz, quando todos se ajudavam e ninguém se importava com convicções políticas, tampouco com o fato de alguém ser rico ou pobre”, escreveu Bregman. Na época, o proprietário de um pub, por exemplo, anunciou: “Nossas janelas foram destruídas, mas nossas bebidas continuam ótimas. Entrem para experimentar.”
“Seres humanos são muito espertos”, lembra Loos. “A gente precisa de comunicação quase instantânea para operar no nível de otimização e desempenho que a gente opera hoje como sociedade. [Uma queda global da internet] talvez fosse a oportunidade de reconstruir sistemas melhorados, mais eficientes, ao invés de gastar recursos preciosos, construindo versões primárias e antigas, que hoje em dia não são mais usadas, como torres ou cabeamento”, completa.
Por fim, questionada sobre o que faria, caso a web caísse de repente ao nível global, Francesca Musiani não se mostra tão otimista quanto Loss. No entanto, não perde uma característica demasiada humana frente às dificuldades, o humor: “Pensaria que estou desempregada, um pouco como os paleontólogos de Jurassic Park (1993).”