Domingo, 24 de novembro de 2024 - Email: [email protected]




Além dos muros de Villete

A Resolução CNJ n. 487/2023 à luz da luta antimanicomial e da desinstitucionalização



- Advertisement -

Em fevereiro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução n. 487/2023, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para a implementação das diretrizes da Lei nº 10.216/2001 no âmbito do processo penal e da execução de medidas de segurança.

Em resumo, a Resolução busca aprofundar os esforços do movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil por meio de ideais de desinstitucionalização e de reinserção social dos indivíduos portadores de transtornos mentais em conflito com a lei.

Quando vi as primeiras notícias em torno do tema, a primeira reação foi de perplexidade. Quer dizer que Chico Picadinho poderá voltar às ruas? Um horror! Mas não é bem assim que a banda toca, por mais que as fake news queiram fazer parecer que seja. Foi então que se deu início à minha busca por mais informações sobre a temida “soltura dos loucos criminosos”.

Primeiro, é preciso lembrar que a Resolução nada mais é um desdobramento da já atuante Política Nacional de Saúde Mental, que já prega a desinstitucionalização como princípio orientador, junto ao tratamento do indivíduo em comunidade e com a participação de familiares, amigos e demais atores sociais.

Em segundo lugar, é preciso compreender que a Resolução trata de um grupo social duplamente vulnerável: poucos assuntos geram tantos sentimentos contraditórios quanto os transtornos mentais e os crimes.

Quando juntos, temos então uma receita perfeita para a delegação do (des) afortunado indivíduo à invisibilidade e ao abandono no que se refere aos seus direitos e à proteção de sua integridade, seja ela física ou mental.

Sua sentença? Às vezes pode ser o tratamento ambulatorial para cura do denominado episódio de periculosidade. Às vezes, pode ser o esquecimento em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

Vale também lembrar que os Hospitais de Custódia são uma mistura aterrorizante do que há de “melhor” das prisões e dos manicômios. Em meio a tantas pesquisas sobre tais instituições, meu hábito de leitura fomentado desde tenra idade se mostrou presente ao trazer à tona a lembrança de uma obra (muito querida, particularmente) de Paulo Coelho, cujo título é Veronika Decide Morrer.

No livro, uma jovem chamada — adivinhe — Veronika decide atentar contra a própria vida. A tentativa é falha, e ela acorda em um leito de tratamento intensivo no sanatório de Villete.

Nos muros de Villete, não somente vemos a personagem ser provocada a refletir sobre diversos temas, como também observamos a sua “participação”, sem seu consentimento e sem ao menos ser informada, como objeto de estudo e experimento (no sentido arcaico e instrumental da palavra) do médico responsável pela unidade.

Um dos temas presentes na obra de Paulo Coelho é exatamente a questão a ser tratada tanto pela Política Nacional de Saúde Mental quanto pela Resolução n. 487/2023: a segregação dos “indesejáveis” nos muros das instituições manicomiais.

Em todos os casos mencionados podemos observar o questionamento da hegemonia manicomial no tratamento dos transtornos mentais.

Outros pontos de congruência podem ser vistos no tocante à importância do tratamento do indivíduo e não só da doença, sem suprimir a sua identidade, seus direitos e sua individualidade; no enfrentamento dos estigmas associados aos transtornos mentais, e ainda a valorização da participação social na recuperação do indivíduo e como parte essencial do seu processo de cura.

Inclusive, é interessante lembrar que, conforme o ordenamento jurídico brasileiro, o transtorno mental pode ser fator excludente de culpa e, perante a incapacidade do indivíduo de perceber a ilegalidade de seus atos e também as suas consequências, este é considerado inimputável perante a lei e não deverá sofrer pena — no sentido punitivo — mas sim ser alvo de medida de segurança, cujo caráter é reformativo.

Acredito ser claro que os Hospitais de Custódia, com toda a sua glória manicomial, não se encaixam exatamente no conceito de ambiente reformativo e, portanto, não são adequados para o cumprimento do objetivo de tal ação.

Quer dizer que Chico Picadinho voltará à liberdade? Não sei dizer.

Mas sei que a Resolução afirma que todo caso deverá ser analisado por uma equipe técnica e tratado dentro de suas especificidades, e também que ela não exclui a possibilidade de internação em caso de necessidade.

Esta só não se dará em um ambiente tão negativo como o dos Hospitais de Custódia, mas sim em leitos de saúde mental em hospitais gerais, e sempre com o intuito de recuperação e reinserção social.

Concordo que existe a necessidade de esclarecimento em relação à aplicação prática das diretrizes da Resolução n. 487/2023, como, por exemplo, no que se trata das adaptações necessárias ao Sistema Único de Saúde (SUS), à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e similares para que seja possível a absorção exitosa dos indivíduos portadores de transtornos mentais em conflito com a lei, sem que haja o comprometimento do atendimento daqueles já inseridos nos sistemas e do bem-estar social.

Entretanto, entendo também que o modelo manicomial de tratamento já mostrou repetidamente a sua incapacidade de recuperação da saúde do indivíduo — seja ele criminoso ou não — e a sua geral ineficácia.

Talvez seja hora de finalmente voltarmos nossos olhares para novos horizonte e, assim como Veronika que, ao observar as montanhas além dos muros de Villete se vê acometida pela vontade de viver, possibilitar que essa epifania se faça presente nos olhares dos indivíduos que hoje estão fadados ao esquecimento nos Hospitais de Custódia e auxiliar na sua recuperação e reinserção social por meios humanos e adequados.

 



Últimas Notícias





Veja outras notícias aqui ▼