Fruto de uma complexa engenharia econômica, o Plano Real também demandou um intenso esforço político para transformar o Brasil. Encaminhado pelo Palácio do Planalto por meio da Medida Provisória 542/1994, o plano elaborado por um grupo seleto de economistas enfrentou desconfiança e muitos embates no Congresso Nacional.
A liderança do presidente da República, Itamar Franco, e do ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, na articulação política foi fundamental para o avanço do Plano Real, lançado há exatos 30 anos, em 1º de julho de 1994. Senador licenciado, FHC tinha a confiança do então chefe do Planalto para encabeçar as negociações no Parlamento em mais uma tentativa de domar a crise da hiperinflação.
O embaixador Rubens Ricupero, também integrante do governo Itamar Franco, conta por que o presidente foi personagem central na epopeia do real. “Itamar foi vital. Sem ele, não teria havido o real, porque sem ele não teria existido o Fernando Henrique Cardoso”, disse o ministro da Fazenda à época do lançamento do plano econômico, em entrevista recente ao Canal um Brasil.
Ele também registra o mérito de FHC, que viria a suceder Itamar Franco na Presidência da República. “Fernando Henrique Cardoso é a grande figura nessa história. O real, como toda grande obra, é uma obra coletiva. Houve muitas contribuições, mas algumas são mais duráveis e fundamentais do que outras. A dele, sem dúvida, foi a mais importante, tanto do ponto de vista qualitativo, quanto quantitativo. (…) O povo brasileiro de fato se convenceu da malignidade da inflação. Os políticos, eu não tenho tanta certeza”, pontuou Ricupero na semana passada, durante evento comemorativo dos 30 anos do Plano Real, organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso na semana passada.
A nova moeda nasceu do trabalho de economistas como André Lara Resende, Armínio Fraga, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan e Pérsio Arida. Naqueles tempos, a inflação chegou a bater os quatro dígitos. Em 30 meses, o real derrubou a inflação para a marca de 5% ao ano. Em 1998, o índice inflacionário chegou a 1,6%.
FHC e o time de economistas instituíram o tripé macroeconômico que vale até os dias atuais: câmbio flutuante, superavit primário e meta de inflação. O preparo para a entrada no real começou com uma medida de equivalência chamada de Unidade Real de Valor (URV), que tinha paridade com o dólar.
Embates no Parlamento
A medida provisória editada por Itamar Franco levou um ano para ser votada. Foi reeditada 12 vezes pelo Poder Executivo para que não perdesse a validade. Atualmente, para uma MP não caduque, é preciso que ela seja apreciada pela Câmara dos Deputados e Senado Federal em 45 dias, a partir da publicação.
A MP do Plano Real acabou aprovada em 28 de junho de 1995, em votação simbólica, ou seja, sem o registro formal de voto, e foi marcada por embates entre parlamentares da base governista e de oposição. O senador Esperidião Amin (PP-SC), que também ocupava um assento na Casa Alta em 1994, avalia, em entrevista ao Correio, que FHC exerceu uma função de “pacificação e tranquilização” tanto no Congresso Nacional quanto no Palácio do Planalto.
“A confiança não veio no primeiro dia, com certeza. À época, havia um misto de incredulidade muito grande com a esperança, mas eu acho que havia, acima de tudo, incredulidade de que um plano econômico fosse ter sucesso, porque foram muitas experiências”, avalia Amin.
Para o parlamentar, a adesão popular ao plano veio aos poucos, quando a população foi entendendo “o ganho que o real traria”. “Eu acho que a fotografia desse sucesso foi o real comprando um frango. O real valendo tanto quanto o dólar, coisa que praticamente se manteve até 1999. A incredulidade foi dando lugar a uma sensação de segurança”, afirma.
Esperidião aponta ainda que o papel do Congresso, naquele momento, foi o de “pelo menos não atrapalhar”. “Imagine hoje, o que haveria de exigências fisiológicas, o quanto de orçamento secreto seria exigido hoje… Eu acho que o Congresso teve a grandeza de perceber que era uma oportunidade — mesmo com desconfiança”, pontua
“Contribuiu, discutiu, mas sempre positivamente. Eu acho que isso foi um bom momento do Brasil. Eu acho que foi um momento em que o Congresso se uniu, independentemente de posicionamento ideológico partidário, mas prevaleceu a democracia. A democracia não exige unanimidade, mas sim que haja maioria”, observa o catarinense.
Convencimento
Apesar da lembrança de Esperidião Amin, que disputou a Presidência contra FHC naquele ano pelo PPR, o consenso não foi construído facilmente. Tanto o partido de Amin quanto PFL, PL, PMDB, PP, PSDB e PTB orientaram suas bancadas pela aprovação. Somente PCdoB e PT encaminharam o “não” à MP, na sessão presidida por José Sarney (PMDB), que presidia o Senado em 1994.
A economista e então deputada Maria Conceição Tavares (PT-RJ), que faleceu no início de junho deste ano, pontuou à época que o real seria “o pior plano que já houve” e “uma desgraça inominável”.
“Esse plano transferiu US$ 30 bilhões para as classes poderosas deste país. Foi a maior transferência de renda regressiva que alguém já viu e eu, pessoalmente, nos 41 anos de existência neste país. Esse plano fez uma desgraça inominável. É o pior plano que já houve neste país”, avaliou ela.
“O que é que se deseja? Aprovar a medida provisória ou rejeitar para que se institua simplesmente o caos? A decisão que sair daqui será aquela que a sociedade brasileira espera de nós, a confirmação de uma decisão que o povo já aprovou, já incorporou. É o nascimento, aqui, de um novo instante”, defendeu o correligionário de FHC, o então senador Geraldo Melo (PSDB-RN).
“É preciso apontar as fragilidades da política econômica, principalmente com relação à servidão da renda que continua sendo perversa com a falta de medidas para tratar a pobreza. O nível atual da taxa de juros tem que ser reduzido na máxima urgência possível, pois constitui-se mecanismo perverso. A taxa de desemprego tem subido nos últimos dois meses, bem como os níveis de inadimplência das empresas”, sustentou Eduardo Suplicy (PT-SP), atualmente deputado estadual e senador, na ocasião.
Desconfiança
A esquerda acabou aceitando o Plano Real, apesar das desconfianças, especialmente dos petistas, que viam na estratégia uma manobra para eleger FHC. O atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, chegou a avaliar, em 1998, durante a corrida à Presidência que teria a reeleição de Fernando Henrique Cardoso como resultado, que não haveria motivos para comemorar. O posicionamento pouco é lembrado pelos integrantes do PT. Lula visitou FHC em agenda em São Paulo na segunda-feira passada, quando o chefe do Executivo disse ter “grande carinho” pelo ex-presidente.
“Não há o que comemorar. O Brasil está à beira do caos com essa política econômica”, declarou o petista, em um evento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), listando banqueiros, especuladores e o ministro da Fazenda na ocasião, Pedro Malan, entre aqueles que teriam motivos para festejar os quatro anos do real. A avaliação era de que o Plano Real estaria ancorado em um tripé de dependência externa, juros altos e abertura “descontrolada” da economia, o que inviabilizaria a combinação entre a estabilidade e o crescimento que gerasse empregos.
O cientista político André César aponta que as transformações sociais que programas como Bolsa Família ou Minha Casa, Minha Vida trouxeram aos brasileiros só foram possíveis graças ao sucesso da nova moeda. “Sem dúvida, o governo Lula 1 e 2, também o governo Dilma Rousseff (PT), tiveram grandes ganhos em cima do que se conseguiu via Plano Real.”
“Primeiro, havia a inflação, que era um flagelo. A hiperinflação que a gente vivia era um flagelo, que taxava em especial as faixas dos estratos inferiores da sociedade, os pobres em especial, sendo bem direto. Então, quando você controla a inflação, bota um freio, um acerto, um entendimento, realmente foi possível conseguir recuperar o poder de compra da população”, avalia o especialista.
Segundo André, a equipe de economistas da Fazenda, FHC e Itamar deram prioridade à estabilidade econômica. “E aí, veio o governo Lula, ou os governos do PT, e deu um passo além, que é a questão da política e do social mesmo, mas, se não houvesse esse ajuste no plano econômico, certamente não daria certo.”
“Nós vimos outros planos, Plano Cruzado, Plano Collor, Plano Verão, quer dizer, assim, tentativas erradas, que acabavam virando pó em algum momento. Então, o Plano Real foi muito importante e realmente deu um ganho grande para as políticas implementadas pelo governo Lula, a partir do início de 2002”, emenda.